Decidi fazer um cicloturismo leve até Pirenópolis. Sozinho, por um caminho que nunca tinha ido, pela terra. Minha ideia era gastar o mínimo possível. Fui munido de muita castanha, fruta seca, paçoca, torrone e soro fisiológico em pó.
Saí meio tarde, pois pretendia dormir no caminho, no povoado de Aparecida de Loyola. Levei apenas uma rede para o pernoite. Sabia que ia ser frio, então levei bastante roupa de frio e dois sacos de dormir. Já na saída, percebi o primeiro erro que cometi: fui com luvas fechadas, de dedo inteiro, pois estava frio. Mas, em 10 minutos de pedal, já não aguentava mais aquelas luvas, e toda vez que precisava ver algo no celular, tinha que tirá-las.
Passando pela Ceilândia, notei que tinha esquecido uma tranca para a bike. Estava bem próximo da casa de meu amigo e companheiro de cicloturismo Yuri Prestes.
Passei lá.
Ele não tinha também, mas estava fazendo um trabalho de reforma no mascote do prevfogo Labareda, e me fez experimentar a roupa pra ver se ele tinha costurado certo.
Não tinha.
O rabo estava de ponta cabeça.
Passei pelo Sol Nascente e segui pela rota previamente destacada que fiz pelo Strava, até chegar a uma porteira fechada que não tinha sinais de que era passagem. Mas não tinha outra opção, não havia outro caminho, então pulei a porteira e segui. Pulei outra porteira e segui até encontrar dois homens trabalhando na fazenda. Me aproximei já chamando, para não chegar de surpresa. Minha intenção era só acenar e passar batido, mas um deles me chamou. Quando cheguei até ele, estava irritado, pois ali não era passagem há muito tempo. Ele parecia querer que eu voltasse, mas, já que a BR estava muito perto, resisti e falei que já estava pertinho.
E segui.
Ele disse para não passar mais ali.
Chegando na BR, logo tinha outra entrada de terra para o Núcleo Rural Monjolinho, e lá mais uma vez o Strava me pregou uma peça: muro alto e portão fechado, terra particular sem qualquer possibilidade de acesso. Voltei e segui pela BR 180. Peguei a BR 190 e logo estava de volta à estrada de terra, a caminho da Cidade Eclética. Cruzei a divisa DF – GO e tomei um banho de rio bem na divisa. Tinha uma família fazendo churrasco ali. Me aproximei e já cumprimentei, ninguém respondeu. Disse que ia só me refrescar um pouco ali no rio. Após alguns longos segundos de silêncio, um deles respondeu o “chega mais” mais seco que já ouvi na vida.
Chegando em Cidade Eclética, bem na hora do almoço, fui ao único restaurante da cidade. Entrei e logo vi uma senhora preta sentada em uma grande mesa no meio de uma conversa que dizia: “Se Bolsonaro vir candidato de novo, eu voto nele!”. Abertura das Olimpíadas na TV. Almocei bem. Ela e os dois netos estavam numa luta ferrenha de comportamento. O de 7 anos batia no de 4 anos. Até que, em um momento, eu intervi. Falei com o maior: “Olha seu tamanho! Você não pode bater nele!”. Funcionou, o pequeno não apanhou mais. Papo vai, papo vem. Ela falando de Lula, Bolsonaro, Maduro e eu só escutando. Ela vem com uma assim: “eu sei que o Lula é mais dos pobres, mas Bolsonaro que é o cara, por isso que a Globo detesta ele”. Em dado momento, ela perguntou minha opinião sobre o Maduro, que, se não ganhasse a eleição, ia derramar sangue. Eu disse que estava por fora desse assunto.
Paguei 15 reais no almoço com copo de refrigerante.
Esperei por mais alguns instantes vendo a abertura das Olimpíadas e meu celular carregar. Quando desce alguém das escadas na tv, coberta por penas. Dava pra ver só as pernas. Aí eu disse: Lady Gaga. Acertei.
Saí.
Passei na única lanchonete da cidade, tomei um café, troquei uma ideia e perguntei ao dono como ele veio parar ali. O pai dele conheceu Oceano de Sá (fundador da cidade) no Rio de Janeiro em 1960, por aí, e logo se tornou seguidor dele. E que veio na cola do pai em 1995 e lá estava desde então. Paguei 4,50 em um café e uma Coca-Cola pequena.
Passei no cemitério, onde havia uns túmulos comuns e uns enormes. Havia um grupo de cinco pessoas rezando veementemente para um túmulo ali, mas fiquei de longe tirando umas fotos.
Peguei a estrada. Passei por um bar onde havia um acesso ao rio e tomei um belo banho. Pagava para entrar, mas o cara liberou sem eu nem pedir nada. Lavei minha blusa e segui viagem.
Ao final da tarde, cheguei em Aparecida de Loyola. Já de cara, vi umas crianças com lencinho vermelho no pescoço e montadas a cavalo. Tinham uns seis anos, bem meninos mesmo. Cheguei à praça e tive A SURPRESA. A cidade estava LOTADA, muita barraca na praça, carro com som alto, cavalo para todo lado, todo mundo de chapéu. Primeiro, achei legal, pois não ia dormir sozinho na praça. Aproximei-me de um grupo fazendo churrasco e pude perceber o alto nível alcoólico de cada um ali, tudo monstrão de cachaça. Perguntei se era de boa dormir na rede ali do lado e disseram que sim. Continuei rodando a praça. Havia um cara com a cara toda estourada, conversando sobre a queda de cavalo que tinha tomado, estava empinando o cavalo e caiu de cara. Estava feio pra caramba! Comecei a não achar tão interessante assim a cidade cheia, eu de lycra no meio dos cavaleiros chamava muita atenção. Era a Festa do Divino. Peguei minha única bermuda que não era colada e vesti por cima do bretelle. Uma criança de uns oito anos veio conversar comigo, talvez o único sóbrio ali. Consegui valiosas informações: não havia restaurante na cidade, mas às 8:30 ia sair a janta para todos, era só chegar e comer. Nisso, um adulto veio falar comigo: “Você tá meio perdido aí, né?”. Era o Pança, que logo me convidou para acampar no terreno dele. Agradeci o convite e fui. O cara era pedreiro e estava ele mesmo construindo sua casa. Amarrei a rede do lado de fora e fui tomar um banho quente. Maravilha, eu pensei que nem ia tomar banho essa noite, ainda mais quente. Pança me explicou a dinâmica da janta: primeiro iam os foliões, e só depois os “cata-pouso”, que são pessoas que não estão na Folia de Reis mas estão ali no meio da bagunça. Me identifiquei como Cata Pouso então. Havia uma ordem na fila e que depois de servir, não podia voltar. Pança saiu para o boteco e eu fiquei ali, esperei ele voltar para seguir os ritos da janta. Quando ele voltou e fomos à procura da comida, já tinha acabado, mas estavam fazendo mais.
Fiquei dando rolê com o Pança nos grupos. Fomos a um acampamento comer carneiro. Eu já me sentia parte da parada, mesmo estando sem chapéu. Me disseram que só de cavaleiros havia 240, e muitos, mas muitos “cata-pouso” como eu. Eu só imaginava onde esse pessoal todo acampado ia fazer suas necessidades. Era muita gente e nenhum banheiro. Muita pinga, paratudo, São João da Barra. Eu me contentei com duas latinhas periguete. Apareceu um candidato a vice-prefeito de Formosa. O cara parecia ter saído de um filme, de tão estereotipado que era. Aquele barrigão com a fivela enorme, cumprimentando todo mundo. E eu sempre era apresentado como o bicicleteiro que veio de Taguatinga. Havia outro cara que era candidato a vereador, mas parecia não ser muito bem quisto, pois andava escoltado por dois PMs de Goiás com metralhadoras em punho. Onde ele ia, era acompanhado por esses dois PMs com o dedo do lado do gatilho. Sendo que ele nem vereador era, era candidato e já tinha esse contato de andar com escolta do governo. Interior de Goiás, né... Havia gente com arma na cintura, com facão na cintura. Eu estava preocupado com tanta gente bêbada, poderia sair uma confusão.
Pois saiu a janta, bati uns três pratos. O dono da casa foi bem com a minha cara e trocamos umas ideias. E estava frio, muito frio. Eu com o visual meio nada a ver. Chinelos, dedos de fora. Uma calça colada segunda pele e uma bermuda curta. Três camisas e um casaco de pedal com marca de patrocinadores. Uma touca branca. Um outsider no meio de todos.
Vi que havia dois grupos bem distintos: os foliões tradicionais, com viola na mão, dançando catira e executando cantos tradicionais da Folia de Reis, e os jovens baladeiros com som alto no carro e muita azaração. Ambos os grupos bebiam bastante.
Fui dormir.
Deitei na rede. Três meias, dois sacos de dormir e pés gelados. Só dei umas cochiladas e acordei com os dedos dos pés dormentes. Lembrei que havia um carro lá do lado, que o Pança disse que, se o frio pegasse, eu poderia dormir dentro dele. Às 5:30 da manhã, lá fui eu para dentro do carro e dormi um pouco. Saí às 6:30 para ir tomar café da manhã com os foliões. E ainda havia gente tomando pinga para rebater a friagem. Altos causos de farra da noite anterior. Na entrada do café da manhã, todos deixavam os chapéus no telhado de palha da casa, entravam, se serviam e saíam. Fiz o mesmo, umas três vezes. Conversei novamente com o dono da casa e disse que não ia mais para Pirenópolis, que ia tomar outro caminho para Girassol – GO e de lá pegar um ônibus para casa. Mostrei a ele o caminho no celular e tudo certo. Ele me disse que eu ia passar em frente a um viveiro de onças, onde chegam onças resgatadas do Brasil todo. Algumas voltam para a natureza, outras não. E que o irmão dele era gerente lá; se não tivesse visita agendada, eu poderia entrar de boa, pois pagava um valor para entrar. O pai deles chamava Carlão.
Voltei à casa do Pança e nem sinal dele. Ele chegou de madrugada e ainda dormia. Passei pelo problema que todos ali na praça devem ter passado: maior vontade de usar o banheiro. O banheiro era dentro da casa do cara e eu não queria acordá-lo. O quintal era grande, cavei um buraco e fiz ali meu banheiro.
Saí da cidade e, menos de 10 km depois, passei em frente ao NEX viveiro de onças. Já havia alguns turistas lá esperando para entrar, junto com duas mulheres guias. Já tentei dar um jeito de entrar, mas elas disseram que a visita era só agendada e custava 250 reais para passar o dia. Agradeci e segui caminho. Pela cerca, vi um cativeiro de onça. Parei para tirar umas fotos e logo vi um cara que estava trabalhando lá e puxei assunto através da cerca mesmo. Ele me contou da onça que estava vendo, que era cega pois tinha tomado um tiro na cabeça. Conversa vai, conversa vem, perguntei seu nome. Era Carlos. Aí eu disse: “Você que é filho do Carlão?” (Falei que tinha dormido em Aparecidinha, estava na Folia de Reis e tal). Ele disse que o filho era outro, que era gerente lá. Ele era cunhado dele. Mudou o tratamento e disse que, se não tivesse visita agendada, eu poderia entrar lá e conhecer um pouco. Pena que era sábado e havia visita.
A estrada era só o pó, estava prejudicando muito a corrente da bike. Fiz uma coisa que nunca tinha feito: limpar a corrente da bike com lenço umedecido. Até que funcionou, fiz isso umas três vezes durante a viagem. Limpava com o lenço e passava óleo novamente. Neste segundo dia, minha bicicleta estava fazendo uns barulhos estranhos, como se a roda estivesse raspando em algo. Sempre que pegava uma velocidade maior, fazia um “vrrrrr”. Eu parava e não tinha nada pegando na roda. Lá ia eu de novo e “vrrrrr”. Parava e tudo girando normal. Peguei asfalto, limpei a corrente mais uma vez, e o “vrrrrr” acontecia de 10 em 10 minutos. Acabei indo mais devagar para isso não acontecer. E esse mistério perdura até hoje. A bike está sem as bolsas, mas eu ainda não andei nela para saber se o barulho persiste.
Almocei em Girassol (R$ 24,00) e fui pegar um ônibus (R$ 7,20) para Taguatinga. O motorista simplesmente não quis me embarcar, e eu sei que pode. Se a bicicleta estiver desmontada (estava), fora do horário de pico (estava) e uma bicicleta por veículo (era). Esperei o próximo ônibus, agora sim já munido de mais informações do CONTRAN, se ele falasse que não ia fazer um barraco. O motorista foi maior gente boa, subi com a bike no ônibus e ainda trocamos uma ideia.
Resultado: voltei para casa a tempo de ver a apresentação de circo do meu filho, que eu já estava contando que ia perder. Gastei R$ 46,70 e tive muita história para contar.